Marcos Montanhês
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Pretérito mais que perfeito


 

  Soneto da circulação
Travesseiro de Nuvens
Amor
Arritmia
Pequeno universo: uma esquina
Monólogo elétrico
Vida submarina
Diga que sim
Homopoema
Uma rápida visita
Rimas mais que perfeitas
Litora maris
Pacto iluminado
Frágil sentimento
Oito pés
Entardecer
Único caminho...(?)
Soneto da auto-destruição
A lagarta e o tempo
Canção de despedida à querida
Sinais
Uma morte qualquer
Palavras pretensiosas
Secura
Aos verdes ventos
Interfira!
Meus eus
Enfeite parasita
A cadeira amarela
Enredo
 
  Não estou só nisso tudo
Pausa necessária
Fácil ilusório
Trunas!
Discurso na praça
Condições
A palavra poeta
O visitante
Falta de costume
Um sonho qualquer
Pressa?
Reflexão
A pastagem
Nublado instante
Faça sentido (poema holocáustico)
Uma ode a tudo que odeio
Consagração do novo ano
Importância
Seja bem-vindo à loucura
A criação
Ardilhama
Tarde demais
Versos cortantes
Pelo menos a expressão
Paisagem transbordante
Onde está o engano
Tempestividade
O possível velório da tábua
A árvore alta
Versos resistentes
 
 




 

Soneto da circulação

A janela está aberta
De modo que entre a informação
Em símbolos definidos
Como o padrão

Vários, e sempre
Pois mais novos virão
Sempre conseqüentes

E que venha sobretudo
Trazendo inspiração
Trazendo as idéias
Que me alimentarão

Pois um livro é para a gente
Ao menos para alguns de nós
Como sangue para o coração

 

 

Travesseiro de nuvens

O travesseiro de nuvens
Em que me envolvo, pequenino,
É gigantesco e interminável.

Nele me aqueço,
Faço-me pena
Jogada ao vento.

E adormeço,
Acolhido em seu tempo incalculável
De inesgotável afeto.

Eu penso, não peço,
E a mim é dado o resguardo,
O conforto e a solidão
Necessários para este momento.

E agradeço,
Após o acolhimento,
E prometo voltar outras vezes.

 

 

Amor

Amaciando o ninho,
Morre o passarinho.
Os filhotes se aquecem,
Recostados em seu corpo frio.

A cigarra canta,
Mal rompe a tarde.
O último suspiro é dado,
Rindo da morte que chega.

Atrás daquela montanha,
Meio acanhado,
O sol se deita em silêncio,
Recebendo da terra o afago.

Assim passam os dias,
Migrando para o infinito,
Ornados de milagres,
Repletos de energias.

 



Arritmia

Ai, que susto --/-- você me deu,
Luz toda veloz --/-- surgindo de repente,
Cidade de luz --/-- surgindo do ausente,
Translúcida --/-- teia de cristal,
E arrítmica --/-- vida em profusão,
--/-- a teia da vida,
Pareceu-me fria, --/-- e era fria, e
Eu a via com a alma --/-- ainda vazia,
Em ar de confusão --/-- com agonia,
Sobretudo --/-- confusão
Confusão --/-- de vida vazia,
--/-- pareceu-me que sorria,
Eu fui um tonto, --/-- e hoje percebo
Que matei um garoto --/-- que apenas me olhava.

 

 

Pequeno universo: uma esquina

na moldura dianteira
um muro azul espera o sinal,
que diz à fila atras de si
as palavras costumeiras
para o bem estar geral.

universo finito e contínuo,
contido em si mesmo;
um breve, curto momento,
e este tempo só agora percebo.

"hei, quer morangos?"

não, não quero, obrigado.
estes morangos estão envenenados,
asfixiados, dopados, não se lembram
da frescura do campo e do orvalho,
do riacho onde nasceram.
coitados, estes morangos
foram há tempo obrigados,
destexturizados,
aquerenciados ao podre ar,
impregnados por monóxido de carbono;
estão mortos e não se aperceberam.
não, não quero, obrigado!

prefiro espiar o pardal,
que passa indiferente e seguro
entre mim e o muro;
este ser que o homem criou
como se a garota azul
fosse de sua espécie,
como se o cinza solidificado
e os labirínticos rios negros de piche
fossem sua casa;
acostumado com as vozes,
com os olhos e as buzinas,
assim como nós.

prefiro escutar o apito,
o grito insistente,
como o de quem diz:
vão, virem, parem;
olhem, sou um sinal ambulante;
passem, vão daqui!
não posso seguí-los,
mas como desejo ir.

prefiro olhar para o céu,
o mais agradável contraste
que poderia haver,
que de tão puro se faz parecer
a coisa mais artificial
em meio a tanta comodidade e loucura.

prefiro observar o movimento,
anônimo e atônito,
da constante transição;
o asfalto sujo,
coberto de marcas e rugas,
manchados de vestígios
de nós e de fugas;
a calçada esgotada;
o muro azul;
o barulho da obra;
os ruídos indecifráveis;
e as sobras.

prefiro observar...

mas na moldura dianteira
o muro se distancia,
os morangos encontram o passeio,
e esperam a passagem do dia.
engato a primeira marcha,
e me concentro de repente,
sou tomado por automatismos,
e avanço até o próximo sinal,
onde outro pequeno mundo me espera.

 

 

Monólogo elétrico

Porque
Este
Cérebro
Ainda
Tenta
Roer
Esta
Insípida
Saudade?

O que faz ele querer sondar
O insondável?
Perscrutar o impenetrável,
Continuar em sua fúria
Na busca de qualquer detalhe?

Precisa admitir,
Cérebro que não descansa,
Que a saudade foge a ti
Como foge a esperança,
E lembrar, acima de tudo,
Que já não é mais criança.

 

 

Vida submarina

Sentado na areia da praia
Sentindo a brisa do mar
Percebendo como é bonita
A sua luta interminável
A sua batalha inevitável
Contra sua própria massa
A energia com que bate na costa
Devagar invadindo terreno
Pouco a pouco removendo
Pedaços do continente

Será o destino o mar
De todas as criaturas terrenas
Ou a água secará
E tudo, todos morreremos?

Será que outro mundo
Submerso, existe lá
No meio do oceano deserto
Repleto de vida?

Vida,
Apenas moléculas
Interligadas, intercaladas
Que não se pode explicar?
Ou pedaços do oceano
Desgarrados
Que um dia irão se juntar
Ao aquático mundo submarino
Cujas belezas secretas
Ninguém ousou encontrar?

 

 

Diga que sim

Quando o céu escurece e o sol aparece
Refletido na pele tão branca e pequena da lua
Você diz que não.
Ah, você diz sempre que não!
Então, por favor, não,
Não diga que não.

Diga que sim,
Que quer ficar assim bem perto de mim,
De rosto colado,
Olhando o céu estrelado em cima de nós,
Que só faz brilhar
O amor que tenho aqui dentro do meu coração.

 

 

Homopoema

Amo-te, amor amigo,
Meu amigo amante,
Das entranhas de meu peito
Ardente e delirante,
Amo-te, pois se parece comigo
Até no semblante.

Oh! meu amor, tu
Não me serve de abrigo
Nem de estante;
O que me serve, de ti,
É teu lindo sorriso,
Que me faz de pronto sorrir,
E me alegra o instante.

Meu amor amigo,
Cabem em mim tuas vestes,
E não me fazem ser
A pior de todas as pestes
Que eu poderia parecer
De acordo com olhos alheios.

Teus pertences, tuas roupas,
Reafirmam minha posição,
E tua boca, e a minha,
Que é tua,
Encaixam-se com perfeição.

Só o que de ti não me serve
É teu relógio,
Mas tua hora e tua demora
Prestam-me, pois são minhas.

Caibo nos teus sapatos;
Entro neles,
E passo a caminhar teus passos;
Vejo teu mundo,
Adequo-me a ele,
E percebo que no final da aventura
Eu sou você,
Pois somos parecidos
E exageradamente irrefletidos.

Meu amigo amante,
Serve-me tua alegria;
Quando aliada à minha
Tornam-se euforia.

Teus olhos me servem;
Fazem-me ver,
Com a exatidão do olhar de uma águia,
As impurezas do dia
E da vida.

Eles às vezes se desviam de mim,
Percebo,
Mas quando me olham,
Sempre reconheço
A mim mesmo.

 

 

Uma rápida visita

Cheguei e fui recebido.
Levei cumprimentos daqui,
e sorvi o cálido café de lá,
da fazenda Alcandora.
A perfeita infusão!

O açúcar impondo a doçura
na negrura de pura amargura.

Tudo tão bem misturado,
como o baralho que é minha vida,

essa vida partícula,
solúvel nas águas que escorrem
dos olhos,
dos poros,
do céu.

Degustei a quentura,
e conversei fiado.
Disse falas banais,
olhando pros lados,
sentindo-me ilustre vassalo.

Sorri um sorriso perene,
oprimido por tanto agrado.

Como pensão eu compus um poema,
e ao bom dono do lar entreguei.

Levantei-me e fui embora,
agradecendo e vestindo na boca
o suave gostinho da aurora,
como o orvalho que outrora
secou assentado nas folhas do tempo.

Só hoje percebo que deveria ter ficado um pouco mais.

 

 

Rimas mais que perfeitas

Duro rima com muro;
Os dois são duros,
E os dois são muros.

Estopada rima com nada;
Os dois são nadas,
E os dois são estopadas.

Estima rima com rima;
Os dois são rimas,
E os dois são estimas.

Irremovível rima com incrível;
Os dois são irremovíveis,
E os dois são incríveis.

Publicidade rima com cidade,
Ou vá morar no meio do mato,
Onde não há para quem se mostrar.

Desistir rima com fugir;
Os dois são fugas,
E os dois são desistências.

Paciência rima com ciência,
Amor rima com dor.

Sorvete quase rima com flerte,
Que rima com ver-te e com ter-te.

Saudade rima com verdade,
Mas não rima com solidão.

Amigo rima com abrigo,
Irmão rima com irmão.

 

 

Litora maris

Tenho no nome um lugar
Que define bem o que sou;
Marcos é como me chamo
No "Litora maris" estou.

Mar - Costa.

"O sancta simplicitas",
Tudo é tão fácil assim;
Posso estar ardendo no fogo,
Que não tenho medo de mim.

Costa - Mar.

Por isso ando na praia:
Para que assim possa aprender,
Sobre a "longa manus" da areia,
Sobre mim, e com isso crescer.

Marcos:

É este o título meu,
Que define tudo o que sou;
Posso estar perdido no breu,
Que mesmo assim alço vôo.

Litoral:

Minha vida é extenso litoral,
Percorrido sem se cansar;
Quando eu chego ao ponto extremo,
Viro-me, e me ponho a voltar.

E revivo, feliz, minha "vita anteacta".

 

 

Pacto iluminado

Ah! chama da lamparina
brilhante, alegre e vivaz,
enquanto assim for só chama,
traga-me luz e alguma paz.

Seu brilho instável e ondulante
pactua com minhas palavras,
que nada são além de palavras
pequenas e inconstantes.

Ah! chama que não se cansa,
que não pára de dançar
ao som da própria essência,

ilumine minha mão,
e com isso minhas palavras,
para que ganhem independência,
e assim possam brilhar.

 

 

Frágil sentimento

Terminal, acabadiço,
É o que está você, amor;
Acostumado com isso
Como sempre foi.

Torpor quase absoluto,
Tudo a se deixar sobrepor
Por sentimento obstinado
Que não liga para a dor.

Enxergar a previsão,
Ver com clareza o que se aproxima,
É tão fácil quanto fazer essa rima.

Mas insiste, o que posso fazer;
E progride (se faz perceber),
Vivendo dentro do meu próprio viver.

 

 

Oito pés

A cama conta com seis pés;
Deveriam ser oito;
Mas dois deles me trouxeram até aqui
Após o tempo afoito.

Dos seis, dois dormem,
E quatro sustentam;
Antes, quatro estavam acordados,
Agora, dois se contemplam.

 

 

Entardecer

À tarde, enquanto o sol se põe,
acontece alguma coisa
(alguma coisa grandiosa).

À tarde, enquanto o sol desaparece
e o céu muda de cor,
as luzes se acendem, e ascende o meu amor
(ascende até as estrelas).

E lá, no palco infinito do universo,
consigo ver, imerso em felicidade,
tão formosa criatura que é você.

 

 

Único caminho...(?)

No perigoso delírio da loucura
resiste o pensamento mais sensato;

No maravilhoso delírio do amor
reside o sentimento mais mesquinho;

Mas no fundo os dois levam, de fato,
a um grande e único caminho.

 

 

Soneto da auto-destruição

Se de ti roubam os mares,
Levam a sombra à terra,
Abrem veios, fecham vales,
E incomodam com o ruído da guerra;

Inconseqüentes eles sabem que são,
Desconhecem no entanto a verdade:
Que estão em ti por seleção,
Não devido ao amor ou à maldade.

Aceleram com isso a sábia decisão,
Encurtam o espaço e o tempo,
Roubam de ti a palavra e devolvem um lamento;

Sabem que são sua parte,
Que vivem em de ti para ti,
Sabem que sem tua presença não estariam aqui.

 

 

A lagarta e o tempo

-- [E] dessa ilustre fadiga --
-- colherás mui rico fruito: --
-- enfim, a razão me obriga --
-- que tão pouco dele diga, --
-- porque o tempo dirá muito. --
.. (Luiz de Camões, Enfatriôes) ..

A vida é mesmo engraçada:
Depois de tudo o que vemos,
Ouvimos e dizemos,
Somos tachados de loucos.

Que frutos se escondem nesta árvore,
Frondosa, que sombreia minha vida?
Que galho se parece o mais seguro,
Digno de uma escalada repentina?

Qual dentre todos os ramos
É o mais tenro a me vigiar?
Se os frutos escondidos não encontro,
Devo achar o que possa me alimentar.

Grito ao vento: vente!
Faça com que as folhas dancem;
Polvilhe uma pitada de ação
Em minha mansa vida vazia.

Chamo a lagarta que sobe,
Lentamente, a casca bendita,
Cada um de seus inúmeros passos
Constrói a caminhada rítmica,

E a questiono:
Como consegue se abster,
De tamanha mensuração?
Sei que pareces tranquila,
Mas como anda teu coração?

Lagarta de vida reta,
Repleta de satisfação,
Satisfaz-te com a vastidão do tronco,
E com a folhagem de verde são.

Desconheces que há outras árvores
Vives nesta, ignorando o se e o não,
Queria te mostrar os arredores
Mas tua pele, ela fere minha mão.

Deixo-te ir, vá-te embora;
Suba até a copa que é densa.
Não te preocupes com a hora
Vá buscar tua recompensa.

Com o tempo me preocupo eu,
Que o vejo passar tão veloz,
Como uma imensa rede,
Composta de infinitos nós.

 

 

Canção de despedida à querida

Querida, guarde esta insígnia.
Decore meu simples nome,
ou escreva-o,
para que não se esqueça de mim.
Leve-o sempre com você.

Não se assuste
com o que possa parecer!
Eu não quero ter você;
Não sou cela de prisão,
Nem maníaco.

Só o que desejo fazer
São dois rabiscos de nada:
Um em seu coração selvagem,
Outro em sua vida alada.

Só o que quero ter:
Um pouquinho da sua atenção.
Com a milionésima parte de seu sorriso,
Eu levaria a salvação divina,

e seria de todas as criaturas deste mundo
a mais garrida,
na procura de um especial espelho
que refletisse minh'alma em sua face,
e que mostrasse o grau da adoração.

Mas, querida,
Você não me ouve e não me vê!

***

Mundo estranho,
Por que assim há de ser?

Por que tuas voltas não nos aproximam?
Por que teus dias demoram tanto a passar,
e nada acontece?
Por que é tão difícil? (essa rima)
Por que não escutas essa prece?

Por que há de ser assim,
estranho mundo,
lar de todos os lares,
que parece não ter fim?

***

Querida,
onde está você?
Onde neste imenso planeta
você se meteu?

Sei que não está a fugir,
e sei que não se perdeu;
poderia ao menos se mostrar
ao mundo, este meu?...

E dar o ar de sua graça,
deslumbrante aparição,
mesmo que estampada na praça,
num cartaz de promoção.

Surgir de repente,
no banco do ônibus que passa,
na esquina do terreno baldio,
ou no alicerce da construção,
Dependurada, fazendo graça,
Mostrando-se à população.

Pois, querida, você, mesmo que,
Inconsciente do tempo e da área;
reproduzida em um telão;
ovacionada pela massa;
e impressa
na embalagem de macarrão,
que leva seu nome;
É a minha paixão.

... E tenho que me contentar
com um sorriso que não foi para mim,
num pôster seu colado no bar
do seu Manoel e do seu Joaquim,

que é seu único vestígio,
depois de tanto tempo,
pois que antes estava na mídia,
mas acabou se indo com o vento.

Querida,
seu sorriso desviante, todos os dias,
alivia-me a parte que sofre;
a grande porcentagem de mim
que a cada dia morre,
em silêncio, com medo do mundo.

Nas garrafas que me acompanham
por essa longa despedida,
vejo sempre sua bela face refletida.

E nos bocejos do parceiro ao lado,
companheiro de várias entornadas,
vejo minha própria vida,
com meu consentimento,
tornando-se nada.

Por isso, querida,
não venha!
Não ouse encontrar-me agora.
Desisti de fingir ser perfeito,
me cansei da espera,
e da demora.

Fique, querida,
aí, onde está.
Poderia até encontrar
o baú do tesouro,
mas de pronto veria o estrago
causado pelo impiedoso mar,
neste náufrago aquerenciado.

Não encontraria o ouro,
o prestável, a presteza,
somente a embalagem salobra,
poupada pela mãe natureza,
e exibida como um troféu.

Não venha, querida,
não venha.
Fique aí mesmo, onde está.
Não saia dessa parede,
até que este bar se feche,
e eu retorne para alto mar.

 

 

Sinais

Hoje vi desastre
Até em gota de cuspe.
O desgaste,
A loucura,
A maldade da loucura.

Primeiro vi um rato...
Detentor da amargura
Do pote de amargura
Da perda,
Do roubo.

Em seguida a girafa
De pescoço em riste como que perseguisse com o olhar
A sua presa.
O galho desgarrado.
A verdura abandonada.

E depois, pra terminar
O tubarão
Dando o bote
Por baixo, sorrateiro
Sem se fazer notar.

Magoado
Vi o cuspe secar e sumir
E, junto com ele,
O mal presságio que tive.
Que bom! Era somente o velho pessimismo do mundo.

 

 

Uma morte qualquer

Arrancaram-no de seu abrigo
E puseram-no em um cubículo.
Davam-no somente água
E uma comida desprovida
De sal e de gosto.

E ele fedia
Cada vez mais
Com a passagem do tempo.

Mas então no vigésimo dia,
Enquanto ele dormia
Um sono isento de som e magia,
Começou a tocar uma melodia
Com cheiro de campo
E gosto de flor,
E ele acordou de seu sono de
Pedra pesada e parada
E escutou, maravilhado,
Até que a música cessou,
E nunca mais tocou...

 

 

Palavras pretenciosas

O que é isso?
De onde isso vem?
O que está acontecendo
Com esse alguém?

Parece que cai do céu
Que é infinito e sempre dura
Parece que sou o único
Embora saiba que não

E como é difícil
Escrever sobre a pretensão
Fogem-me os verbos
Escapam-me da visão

Sinto a caneta dura
Rastejando com lentidão
Empacando em alguns pontos
Como que dizendo: não!

Mas paro um pouco e reflito
E o fato se descomplica
Pois qualquer reflexão
É digna de ser escrita.

 

 

Secura

Seca-te o escuro que te cobre;
seca-te enquanto dorme,
e quando encontra-se insone;
seca-te as lágrimas,
seca-te a malha;
envolve-te com a secura escura
que te seca, e que consome
tuas mágoas, como alimento
que mata a fome;

Seca-te essa sombra
costumeira e acomodada;
seca-te a fronte;
seca-te o suor da batalha;
seca-te a alma
molhada e angustiada,
colada ao corpo,
e a libera
até que se molhe de novo.

Seca-te o escuro que te cobre,
e que é morno;
seca-te como o sol seca a carne;
seca-te e não te disseca;
e te protege,
essa imensa escuridão,
que alguns chamam de treva,
e na verdade é amor.

 

 

Aos verdes ventos

Venham, ventos verdes que varrem o vale, ventar no vistoso vácuo dessa vida varrida; venham vislumbrar o ventre de vossa vã veemência, e voem, e vejam as vazias varandas voltadas para a vasta vermelhidão - viradas para o vigor viscoso, composto de velozes e violentas labaredas de fogo; venham voando, vendo a velocidade da devastação, a volúpia da morte, a variedade de vocábulos que vibram em volta de teu ventre verminoso e virulento; vistam de tuas verdes vozes esta vastidão em viés, esta via vista como viela, e versada a vós por mim; vistoriem cada vitral desta catedral, e vagueiem pelos vales valadios em volta dela; vadiem se for fato vatídico; valham o olhar do vedor; vedem a volta da voluta voraz, a vulgar virtuose viscosa que parece vulnerável venerada de tão longe; venham voláteis e velozes como virotes vingativos e vidificados em formas vítreas invisíveis e não visadas, que não preenchem a vacância, vacilando na vez de provarem a validade de seus vitoriosos valores, aguardados para o alvo em voga; venham, vejam, viajem, ventos verdes dos vales; e descubram o valor veraz dessa vida.

 

 

Interfira!

Hoje é bem 10 de abril
De um ano que não importa,
Em que lá fora se chama de santa
Uma guerra de ditaduras.

Pra quê a luta, afinal?
Deus desse povo, responda!
Me diga, se existe, o motivo
Que ronda tantos corações...

Vá lá, imponha a moral;
Emudeça o gritar dos fuzis;
Transforme em suspiro o mau,
E a cor cinza do céu em anil;

Vente e farfalhe a poeira;
Descubra a razão do embate;
Leve pra longe a sujeira,
E junto com ela a maldade;

Realize, se pode, um milagre;
Levante todo tanque à altura;
Escreva assim, quão almagre,
Sua voz na infeliz partitura;

E volte pra cá, logo após,
Pra ver a gente daqui,
Que lhe chama em uníssonos nós,
E aguarda uma pitada de alegria.

 

 

Meus eus

Eu somos vários eus,
Mas só o que pesa é o corpo.
Não sou, sendo assim, algum deus,
Ou estranho tipo amorfo.

Cada um dos meus eus tem um gosto
Peculiar, que merece atenção.
Se afasto algum eu do meu rosto,
Gero a maior confusão,
O maior rebuliço.

Por isso, tento sempre ordenar,
Cada eu, em seu devido lugar
Pra que não haja um eterno motim
Instaurado dentro de mim.

 

 

Enfeite parasita

O protagonismo e sua condição:

A velha mangueira, suponho,
despencando sobre o telhado,
possui um passado tristonho,
e não se sente uma mangueira.

Com folhas fracas, opacas,
e ramos não mais verderosos,
a árvore segue parada,
inclinada por ventos maldosos.

O antagonismo e sua maldição:

A erva, daninha e fajuta,
pensa que é dela a dona,
e só faz aumentar a labuta,
sendo uma inútil soma.

A ironia da história:

Mas o que empresta cor à mangueira
é esta erva que lhe prejudica,
que lhe tira o já pouco sangue,
encurtando-lhe, desta forma, a vida.

O óbvio queixume:

Para a mangueira não haveria adorno,
pois o enfeite é uma chaga,
fixado em seu contorno
como quem não quer nada.

A solução universal:

O tempo, inimigo ingrato,
dotado de força e razão,
cuidará de derrubá-la,
deitá-la, por fim, no chão.

O final quase feliz:

Melhor final não poderia haver
para a triste e fraca mangueira,
que antes verá a erva morrer,
por ser diste da alma e praga passageira.

 

 

A cadeira amarela

No quarto dela
só tem uma cadeira,
que não é bonita,
mas é amarela.

Na vida dela
nada se encaixa,
nada é divertido,
não é bem a vida dela.

Nos seus amores
tudo falhou.
Os amores foram embora,
e ela não se acostumou.

Embarcou num avião,
embarcou numa furada;
foi-se embora com tudo,
sem nada.

Deixou sozinha a cadeira,
amarela, abandonada;
foi-se embora de sua própria vida,
embarcou numa furada.

Lá para onde o vento a levou,
não que ela soubesse,
não havia nenhum amor,
mas havia uma longa jornada.

 

 

Enredo

Sentir você assim sempre ao meu lado
é contar com uma alegria sempre boa;
é sentir que sempre estou sob resguardo;
é acalmar o corredor tempo que voa;
é sonhar mesmo acordado sempre e sempre...

Sentir que tenho alguém em quem confio
é poder viver a vida intensamente;
é viver eternamente um bom delírio;
é andar usando as pernas plenamente,
e não ter que me assustar com o caminho.

Sentir sua presença mesmo longe
é sentir que mesmo longe somos um;
é saber que mesmo estando assim distantes
nossas almas estão ligadas por algum
fio invisível de amor...

Sentir você é saber que existo;
sentir você é sentir a mim;
sentir você é abolir o desisto;
sentir você é adiar o fim
desse enredo lindo: as nossas vidas...

 

 

Não estou só nisso tudo

Não mais que demais, olhando para trás,
eu não tenho paz, nem um trono.
Sorrindo e vivendo, no entanto sabendo,
que no mundo tanto faz.

Eu tive um sonho... tão real
Sonhei que era intenso, e não foi mal;
eu era grande, com intenção,
sabia quando e onde, tinha razão.

"Sonhou que era grande, que era bem intenso e tal.
Disse que não foi assim tão mal, e não foi.
No sonho havia intenção. Grande, bem intenso e tal.
Sentou-se lá no trono, e não foi mal."

Mas ao acordar, depois de sonhar,
precisei saber para onde olhar.
E então percebi que é necessário cair,
mesmo que isso doa em meu coração.

Voltei a viver,
pois consegui perceber
que nisso tudo eu não estava só.

E olhe agora para mim,
constate, em fim,
que eu estou bem aqui.

Não diga que não,
avise-me onde é que estão,
as palavras santas pelas quais sofri.

Pois com essas palavras eu pude ver
por sobre as nuvens sobre mim.
Dê tempo ao tempo, não vá sofrer...
Enquanto isso, tente me ver.

Então eu corro, subo o morro.
Eu vejo as nuvens que estão voando;
e lá de cima consigo ouvir,
suas risadas, você sorrir.

"Ele corre, corre e sobe; vê as nuvens e se encanta.
Parado, somente esperando, só, aguardando.
Bem no alto, perto das nuvens, ouve o canto do céu.
Ouve as risadas e se encanta... cantando."

 

 

Pausa necessária

Briga!...
E vai dormir enfurecido.

Como alguém adormecido não briga,
acabam-se as discussões,
acabam-se os gritos.

Acorda...
E começa tudo de novo.

 

 

Fácil ilusório

Se te escolhi em meio a falsas metas,
metas frágeis, metas fáceis, metas frias,
é que dentro do meu peito se extinguia
a alegria de andar por trilhas retas.

Se sofri por te escolher e não àquelas,
se com isso ignorei meu coração,
é que a vida não me deu a opção
de pensar na ventania, só nas velas.

E tendo te escolhido então passei,
sofrendo, a vida mais que os demais,
porém, mesmo vencido, não cansei -
e foram muitas as batalhas desleais.

Andei sempre aos tropeços e às quedas
por este longo, liso e lúgubre caminho,
tentando em vão achar no chão qualquer moeda
que me desse a solução e algum carinho.

 

 

Trunas!

Listura cada qual em seu arbão
Falacintas de um puro sorperor
Sim, a vida em todo canto proetor
Das vilemitas que a sorre pardeão.

Trunas! Disse a lure do algarato
E estreva assim sem claro suneor
Trunas! Trunas! Venesim foi sonerato
Como pode tanta asneira ter teor?

 

 

Discurso na praça

O rapaz passa pela praça;
o relógio da torre marca o tempo do discurso
que um velhinho se põe a fazer.
E ele grita:

"Amigos, amai-vos,
pois hoje é o dia
em que toda a harmonia
se concentra de repente
no fundo da gente
e ascende ao limite da mente,
e transborda pelos poros da alma.

Amigos, amai-vos uns aos outros,
pois o amor se é plantado, brota;
e brota como a mais imponente árvore
que alguém já sonhou;
e vai ao encontro do céu,
o infinito espaço real,
para lá de cima deixar
mais
sementes
caírem
sobre a terra do mundo
e sobre mais corações,
transformando-os em terrenos fecundos
do melhor sentimento oriundo
da perfeição magnífica do ser
que somos e não sabemos,
pois tentamos não ver
que a perfeição existe
bem dentro da gente.

Amigos, amai-vos,
pois somos um só todos nós...

Se não vos amai,
seremos ainda um só,
e seremos, que pena, tão sós,
e isso não queremos,
pois então, amai-vos."

O rapaz até que escutou
o que o homem acabou de dizer,
mas está atrasado, que pena...
não dá tempo de tentar entender.

 

 

Condições

Ser assim rude e reservado homem,
a carregar a solidão nos ombros,
não é ser forte por ser rude homem,
e sim ser rude por temer os tombos.

Ser como a lua por detrás do monte,
se ausentando em meio a noite escura,
é ter a vida sempre em dose dupla,
acostumada a se esconder na estante.

Ser assim pobre e indefeso alguém
é como a chama de um pequenino archote,
fingindo a força quando lhe convém,
sendo não homem, e sim fantoche.

***

Digamos que tens, por isso revela,
um sono, um sonho, um sonho inconsciente,
a porta de um mundo que assim se subentende,
um aval, um trunfo permanente.

***

Seus sentimentos são defluentes
de um grande e imponente rio
a que chamo de momento.

Rio largo, volumoso,
cujas margens não se contemplam;
e em cujo fundo arenoso,
há muito esquecidos,
os vestígios das emoções passadas,
a cada instante se sedimentam.

 

 

A palavra poeta

Um poeta não é mais que uma palavra...
São tantas!

Um poeta é a sua única palavra...
Todas as suas palavras o são,
e o são por ser o poeta um só,
uma única palavra,
não uma expressão.

A expressão de um poeta
se dá através de uma única palavra;
a sua palavra, única,
é a sua expressão.

Um poeta pode ser uma oração,
mas será uma oração
com uma só palavra:
a palavra que o descreve
e canaliza a expressão
de sua única palavra
que di-lo ser poeta.

Um poeta não é mais que uma palavra...
São tantas as palavras,
e todas elas o são;
e o são por ser o poeta um poeta,
expressão de si mesmo,
a palavra que não pressupõe
qualquer explicação,
pois o ser poeta já se explica,
em uma única oração:
a palavra certa - poeta.

 

 

O visitante

um monturo de imagens minhas
assalta-me às vezes, e assola
a calma guardada com zelo,
que some, vai embora.

um monte de hermas
expostas em vitrines afastadas
de vidros distorcidos.

nestes momentos silentes
em que se abrem exposições
de mim mesmo: retrospecto
das piores situações ruins,

parece que cresço, não sei,
parece que surgem começos,
parece que surgem conceitos,
parece que surgem caminhos: prospecto;

e mesmo quando me esqueço,
afinal, cada dia é um dia,
que a impura visão tem seu preço,
o preço de ver a mim mesmo,
isso fica guardado na vida,
fingindo a calma aparente
de que cada dia é um começo,
quando, na verdade, também é um fim.

 

 

Falta de costume

Individualidade?
Que trapaça!

Neste mundo onde vivemos,
neste tempo,
individualidade é o que queremos,
é o que almejamos;
neste tempo.

Pouco tempo,
muito pouco,
muito pouco tempo é o que vivemos,
é o que sonhamos, é o que seremos;
muito pouco,
pouco mesmo.

E onde fica a verdade?
Não sabemos...
E a coragem, enfim, cadê,
Onde ficou?

Individualidade é o que queremos,
neste tempo,
pois neste mundo onde vivemos,
individualidade é coisa rara;
pensamento.

 

 

Um sonho qualquer

Vamos brincar
de sonhar. Um sonho
pode começar a brincadeira.

Um céu azul
cobrindo tudo,
destacado -

Imagine isso.

Agora veja o horizonte:
é o mar;
que incrível!

Por enquanto não olhe para trás.
O sol está lá,
tenha certeza.

Contemple o horizonte;
o limite,
a junção imaginária.

Imagine isso.

Consegue ver o imenso rochedo
lá longe, a perder de vista?
Reforce a visão.

Repare como é imponente,
como enfrenta o mar;
repare no conflito de forças.

Uma gaivota passa rasgando
a poucos metros de nós,
e rapidamente se afasta;

uma outra voa na mesma direção,
mas passa bem longe
de nossas cabeças.

Olhe de novo para o mar,
para o horizonte;
fixe os olhos na linha.

Agora vá girando o corpo,
com os olhos fixos,
devagar...

vá girando,
devagar
e devagar...

a praia surge,
a vegetação,
a areia,

a pequena montanha,
mais vegetação,
o brilho do sol,

o calor no rosto
acaricia a pele,
acaricia a pele,

a montanha é mesmo pequena.
O verde predomina,
o céu azul faz uma rima perfeita,

e o barulho do mar, atrás,
é constante,
agradável.

Que momento único,
tranquilo,
renovador.

Agora vire-se para o oceano,
o vasto oceano,
rapidamente.

Olhe que onda imensa,
é gigante!
Você está a dois metros da água.

Ela está vindo,
cada vez maior,
vai passar sobre você, sobre nós.

Cuidado!
Acorde!
Acorde!

 

 

Pressa?

Na pintura azul
Qual círculo desbotado
A lua já brilha.

 

 

Reflexão

O mar: grande espelho
Que absorve o vento frio
Do instante inverno.

 

 

A pastagem

O não mais verde gramado
Daquela vasta pastagem
Sente a mais forte sede
Nestes tempos de estiagem

Mira o céu todos os dias
E não pensa em reclamar
Aquele pasto de futuro incerto
A que foi dado o dom de esperar

Espera que o tempo lhe faça
Crescer forte, desenvolver
Para que possa cobrir o campo
E fazer o verde prevalecer

Mas enquanto a água é escassa
O que torna difícil viver
- Tempo vivido sem mágoa
Que para o gramado é dever -

Ao menos o vento consola
Acaricia-lhe dando esperança
Preenchendo a falta do verde
Anunciando pra breve a mudança.

 

 

Nublado instante

Hoje não sei o que há,
tudo me diz pra esquecer;
olho pro céu a nublar
e vejo o dia morrer.

Junto com o dia a vida
vai se acabando aos poucos,
deixando de ser aquecida,
gritando ao longe, aos loucos.

Hoje não sei o que há,
tudo me diz pra esquecer;
olho pro cinza do mar,
com medo do olhar se perder.

Penso na aurora seguinte;
penso na instante estação;
penso no tolo requinte
com que foi feita a criação.

Hoje não sei o que há,
tudo me diz pra esquecer;
olho pro espelho e o que há
é o medo de um dia saber

que a sorte não vem, já está
junto a mim, bem assim, desde sempre
pois que inata, insistindo em mostrar
que não devo dizer: vida, apre!

 

 

Faça sentido (poema holocáustico)

Hoje em dia
quem nesse mundo
busca a etognosia?
E quanto à eugenia?

Daqui a pouco
nem a eugenesia
será necessária
de tão corrompidos.

A etimologia
foi pro brejo,
mas não se perdeu;
pode ser resgatada
pela etologia
ou pelo etopeu.

Daqui a algum tempo
dirão "às favas" à alforria
e rirão,
com risos distorcidos,
sobre a imensa multidão:
Somos poetas!
E eu direi:
Não são não...
Poetas vocês não são.

 

 

Uma ode a tudo que odeio

Odeio odiar quem me odeia.
Odeio o ódio, e por isso refreio a fúria
e faço uma ode: a ode a tudo que odeio.

Nesta ode o ódio é panaca; não mata, não fere,
não serve pra nada; é só ódio,
somente essa feia palavra que aqui, nesta ode,
está empregada como qualquer palavra;
como, por exemplo, a palavra ode...

A ode a tudo que odeio;
sentimento emancipado, a ode imaculada.

 

 

Consagração do novo ano

princípio

Para os ares a paz dos palmares;
para o céu, para cima; pára o instante.
Vamos ver o calor dessa trégua
corromper a paisagem tranquila.

i a

Nós escalamos e escalamos
e escalamos e não chegamos.
E aonde vamos?
Para onde estamos indo?
Não somos nós que queremos o cume,
é este cume que está nos perseguindo.
É este gume afiado e polido
em que estamos subindo
e subindo

e indo e vindo e indo e vindo;
escorregando.

O caminho está sangrando
o nosso sangue, e faz sangrar
o nosso nome; o nosso nome
está sangrando, estou sangrando,
estamos deslizando junto ao sangue sobre o fio,
estamos afundando neste sangue.

Estamos morrendo.
Estamos correndo e estamos caindo;
estamos perdendo.
Estamos mordendo
qualquer linha que pareça uma ajuda;
qualquer vinha;
qualquer doleiro;
qualquer um;
qualquer letreiro.

ii a

Cadê o pardieiro
Que estava neste mato?
Cadê o galinheiro?
Cadê as galinhas?
Cadê o dono e seu trono de poder sobre fenos, glórias e milhos?
Onde está tudo isso?
Na mente minha, minha amiga mente,
esta mente minha, ninharia?
À minha frente?

i b

Eu lamento e
eu entendo.
Eu pressinto.
Eu sinto que estamos caindo,
e que estamos subindo,
e que estamos subindo e que vamos caindo e que vamos e vamos e vamos subindo.
Vamos indo e vamos rindo vamos lindos caindo e indo;
e vamos sabendo o que é que é tão lindo, e vamos
sabendo e sabendo o que é lindo, e caindo, e subindo e sorrindo
o sorriso perfeito e cantando e cantando um hino:
o nosso.

i c

Que beleza, que beleza,
oh, que incontável beleza
se esconde guardada sob o manto fiel da impureza...
e da grossura.
Que esperteza que esperteza
essa mãe que é uma puta e
que é de todos...
natureza.
Meus parabéns, danada,
muito obrigado e
de nada.

ii b

De nada adianta
ser tachado de animal,
ser tratado em um curral
e depois ser solto.
Soltar-me eu mesmo faço.
Evito a luta tanto quanto ela me evita.
De nada adianta
ser igual.

iii a

Aproveita e vem, não pense;
vem e senta no meu pau.
Venha e sinta que
uau!
Que legal!
Que impressionante...
é tão gostoso.

iii b

A vida,
oh, querida,
é assim, é desse jeito,
bem gostosa.

E o mar? E as nuvens? E os ventos?
O quê que há?

Há que no mar as ondas acariciam, deslizam, correm, se jogam e
gozam;
há que no céu as nuvens entram dentro umas das outras e
gozam;
há que os ventos deliram e gritam e uivam e
gozam;
todos juntos, como num concerto para gemido e orquestra.
Isso é a vida,
não insista.

Não insisto,
mas vejo a cor por trás desses ruídos,
eu vejo o amor.

Rá!
Amor.
A dor dos sentidos,
a dor mais sentida,
a flor mais bonita,
a flor mais mortal.
Oh, o amor,
descartável amor.
Deixa isso quieto,
meu amor,
deixa isso.

iv

E então...
... lá se vai o amor
andando tristonho,
perdido e assustado
nas trilhas sombrias
nos limites da cidade;
nas entradas da selva,
nos laços invisíveis
que guardam segredos
profundos de medo,
de loucura e de terror.
Lá se vai o amor,
já sem forças,
feio, sujo,
torto, castrado,
quase tão morto quanto em pouco estará.
Lá se vai o amor para a forca,
e ninguém olha para ele;
ninguém deseja ajudá-lo,
pegá-lo, cuidá-lo, protegê-lo
e amá-lo.
Lá se vai o amor
que desconhece o amor
pois só conhece o silêncio.

final

Cadê o calor que estava aqui?
Subiu... acabou.

 

 

Importância

A linha da vida é torta,
e a eternidade está além da porta
com seu ativo feitiço
que é o que importa.

Claro.

A luz é tranquila lá fora;
não luta, só vence:
aurora.

O tempo passou, foi embora,
A hora não é mais a hora;
é sonora passagem inaudível
e mão que transforma o agora
em algo tão longe e incrível:
outrora.

 

 

Seja bem vindo à loucura

1
Da beleza aflita que grita
junto ao portão da loucura
digo com toda a certeza:
o assunto está sob a doçura.

Lambe, lambe, lambe -
tentando se adequar.

A vida, que é tão vivida,
presenteou-nos: razão.
Ir no caminho, e a pé é
somente uma opção.

Anda, anda, anda -
tentando não se cansar.

2
Portanto você pensa que sou louco
louco a ponto de, por pouco, consagrar o
a nós, há tempo, reservado lugar
debaixo de qualquer amontoado de terra,
ou num prédio, ou num bosque, ou no ar.

3
Venha a nós o nosso monte;
venha a nós o nosso reino
infinito em tempo em espaço
como vêm as ondas no mar.

Venha a nós a nossa morte...
ela virá;
Venha a vinha, venha a ópera, é...
pra já.
Venha a corte, venha a plebe,
vem zoar.
Venha a cólera, o podre ópio,
vem brincar.

Venha já o operário, o magnata, o marajá.
O santo ateu, pernicioso, em carne e osso, venha cá
Venha cá, vem conservar, a boa prosa desde já...
(vem escutar)
reconhecida pelos deuses, vamos lá!
Orar matar, podar castrar.
Poder mostrar a cor do poder,
a textura da alavanca e o cheiro da catraca,
lambuzada de graxa, funcionando.

 

 

A criação

Antes de haver um deus
Havia o mundo.
E esse mundo não precisava
De um deus.

Deus veio com o homem
E sua aflição.
Preenchendo as falhas ocultas
De cada um dos corações.

Deus não fez o homem,
Foi o homem que fez Deus;
À sua imagem e semelhança,
Num corpo igualzinho ao seu.

Antes de haver um deus,
Antes de haver o homem,
No mundo não havia adeus
Mas já havia o medo e a fome.

 

 

Ardilhama

Eu lhe mostrei um dos caminhos,
mas você não aceitou
vivê-lo até o seu destino,
até chegar o tempo certo
em que seríamos um só.

Eu lhe estendi a minha mão
e lhe mostrei a direção.
Você sorriu e se virou,
andou a só na contra-mão.

Por isso agora, meu amor,
onde tiver calor eu vou,
onde tiver calor eu vou.

Onde estará o meu calor?
Onde será que se perdeu?
Será que foi junto com o pó?
Será que embrenhou no breu?
Será que a sorte o levou?
Será, será que ele morreu?

Tadinho.
Meu amorzinho foi pro brejo,
foi pro mato, foi...
mas não morreu, e

como um rato resistente,
sempre à frente da armadilha,
sempre em frente,
sempre em frente,
o amor sobreviveu.

Você se foi pra todo o sempre,
mas meu amor permaneceu.

 

 

Tarde demais

Perdoa o meu filho, moço.
Não vê que sua filha era de todas a mais aflita na busca da dor?
Perdoa o erro dele, moço, na boa.

Esqueça o pescoço, senhora.
Não lhe disseram que a alma não liga pra rugas e dobras?
Não esconda o caroço em seu peito, senhora, na boa.

Não reze por hoje, seu padre.
Deus hoje saiu pra jogar golfe em Andrômeda.
Não perca seu tempo e seu hoje, seu padre, só por hoje, na boa.

Não julgue o animal, domador.
Ele é capaz de lhe julgar melhor e mais rápido.
Não enfie a cabeça na boca do animal, domador, na boa.

Despreze as doze notas, maestro.
Elas não lhe entendem, tampouco lhe admiram.
Ache outras notas, maestro, na boa.

Sinta o dia quente, desertor.
Se resolveu deixar o campo e seu frescor,
Agora agüente o infernal calor, seu traidor, na boa.

Devolva a sorte grande, jogador.
Você roubou a grande chance alheia com seu truque impostor.
Devolva a sorte ou perca, jogador, na boa.

Semeie o curto mantra, meditador.
Semeie antes que ele estrague e apodreça e morra.
Semeie rápido o curto mantra, meditador, na boa.

Ouça a leve trama, bom padeiro.
Escuta que teu pão está lhe chamando para um leito azulado de terra.
Ouça a trama que você criou, bom padeiro, na boa.

... E depois:
todos irão para a cama,
que isso não é mais hora de brinquedo ficar acordado.

 

 

Versos cortantes

Enquanto escrevo estes versos
Arrancam a cabeça de um homem,
Enfiam uma bala em algum peito,
E queimam um pequeno feto vivo.
Estes são versos reinantes.

O tempo vai passar,
Pois a certeza é maior do que a morte.

Enquanto escrevo estes versos
A cabeça do homem é alçada,
Agarrada e jogada numa sacola;
A bala, retirada, não é enorme
Nem causou enorme engano, pouco dano;
E o feto não sofreu com a idéia
De todas aquelas bolhas lhe inundando.
Estes são versos constantes.

E então quando o tempo passar,
A certeza será maior do que tudo.

***

Enquanto escrevo estes versos
Alguém utiliza a tecnologia para dar cabo da vida.
Antes de cortar os próprios pulsos
Esta pessoa pensa que é dependente até o fim,
Que mesmo para morrer necessita de ajuda,
Mesmo que essa ajuda seja a de uma lâmina,
Mesmo que essa lâmina seja sua.
Pois estes são versos berrantes.

 

 

Pelo menos a expressão

Quem me dera, ao menos uma vez,
viajar pelo planeta com que eu sonhei;
ver do alto tudo que há de melhor,
todo o bem que preenche a alma das pessoas.

Quem me dera, ao menos uma vez,
dar a volta nesse mundo, ir sobre as cordilheiras;
percorrer as ruas, ver cada grotão,
e de todo canto ouvir a voz serena.

Quem me dera, ao menos uma vez,
olhar de perto o poderio e não me corromper
com maus pensamentos de destruição,
e idéias muito loucas de desilusão.

Quem me dera, ao menos uma vez,
recolher toda a maldade e todo desprazer;
levá-los impotentes pro lugar mais longe
sem temer os monstros que eu possa achar.

Quem me dera, ao menos uma vez,
que a paz reinasse sóbria sem um obstante.
Mas eu sei, tudo isso é um distante presente.

Quem me dera, ao menos uma vez,
cortar o nó que prende o medo de uma só vez;
fazer sumir das bocas a sordidez -
dizer ao mundo todo que isso não existe.

 

 

Paisagem transbordante

Cheio de vida,
cheio de tudo,
estou cheio;
cheio de nada;
e não creio estar assim cheio;
estar assim cheio não me satisfaz...
fazer o que?

Fazer uma paisagem.

Uma montanha de plástico
engolida por uma boca de plástico;
um buraco, tudo miúdo.
perto de uma montanha de verdade,
um rio de aço, um riaço;
um dilúvio;
um inferno de prata;
um abraço, o contrato
entre o mar de cristais e a alma.

Cheio de paz em estado de espera;
cheio demais
eu espero.

 

 

Onde está o engano?

Vamos ver o que vem,
vamos ver o que vai.
Qual dos dois é o neném?
Qual dos dois é o papai?

Deixe-me ver,
dê-me a patinha.
Se estiver calejada
abro a porta do berçário
e o libero da gracinha.

 

 

Tempestividade

Quando tudo espreita,
tudo em volta -
cheira-se a chuva que se forma,
cheira-se o medo,
o frio do medo -
e um lampejo
anuncia a pressa do instante,
eu percebo a tolice de perder-me
achando palavras que descrevam
tudo isto.

 

 

O possível velório da tábua

A mágoa, cindida de ciúmes
Fez florescer um belo cogumelo
Na tábua que não amiúde
Deseja ver nela o belo.

Ser simétrico,
Ser sem colorido,
Destituído de alegria
E de vida.

O chão, que hoje é outro,
Em que não há qualquer raiz,
É como mão agarrando o pescoço,
Tapando os olhos e o nariz.

Mas o cogumelo de vida pequena
É como uma vela sobre o feno.

E pode tombar, antes de morrer.
Fato que surtirá efeito contrário,
Ao da destruição causada pelo fogo,
Mas de mesma intensidade.

A queda pode dar um velório decente
Ao pedaço de madeira morta e esquecida.

E como falo de possibilidades,
Pois prever o futuro é coisa de tolo,
Esperemos, mesmo que solitários,
O que irá acontecer.

A vida que havia já está ida,
Mas deixou para o mundo o seu traço.

E mesmo que não haja o velório,
A contribuição foi dada:
Um texto escrito na história,
Em sua memória, nesta data.

Descanse em paz, dona tábua...
Descanse em paz.

 

 

A árvore alta

Vim ao mundo desnudo e chorando
percebi que meu choro era um canto
um encanto perdido no espaço
um pedido, faltava o abraço.

Já andei sobre campos floridos
Caminhei com o joelho fodido
Já morei onde mora o diabo
E até éramos grandes amigos

Já passei por montanhas tiranas
escalei várias delas, sorrindo
outras eram velozes sentenças
perseguiram-me até o cansaço
impuseram-me trilhas de medo
e esconderam da vida a graça
esfregaram-me contra o rochedo
e me serviram a pura trapaça
plantaram em mim o desgosto
e colheram seu grande desejo -
a leveza de uma trégua,
a vantagem sobre a légua,
o simples ar macio -
transformaram-se em nuvens.

Já subi na árvore,
Matei passarinho,
Quebrei o meu galho e
acabei sozinho.

Sozinho, sozinho, sozinho...

 

 

Versos resistentes

Tantas horas tenho em mim,
guardadas.
Horas boas e ruins,
aladas.
Algumas enraizadas,
algumas enclausuradas,
algumas perdidas.

Tanto tempo já vivi,
e foi tão pouco que nem vi.

Quando eu nasci
ganhei (uma parte d)o universo.
Até agora sobrevivi,
até a hora deste verso.
E deste,
e deste,
afinal,
ainda estou aqui.
Ainda estou aqui!

 

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